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Janelas, ficções e narrativas. De novo

Capa do livro Os Enamoramentos, de Javier Marías, lançado em 2012

Capa do livro Os Enamoramentos, de Javier Marías, lançado em 2012

Faz tempo que eu comecei a ler o livro, um ano quase, quando a Companhia das Letras me enviou uma cópia da linda edição nacional d’Os Enamoramentos, a obra mais nova de Javier Marías.

Eles tinham lido alguns posts sobre o autor espanhol no meu blog e acharam que eu poderia me interessar, já que era fascinada por ele. Comecei a ler Marías nas aulinhas de espanhol da Cultura Española, em 2007 eu acho, e gostei na mesma hora de suas narrativas livrescas e personagens permissivos, que se davam ao luxo de viver toda e qualquer ficção em plena luz do dia. Os protagonistas de Javier — primeiro nome de um dos principais personagens do novo livro — leram muito Shakespeare, mas também Alexandre Dumas e Balzac, e trazem várias das características de seu criador: são poliglotas e amantes da literatura, as mulheres gostam muito de homens, e os homens, muito de mulheres. Sua literatura se constrói justamente no limiar entre a ficção e a realidade: no momento em que a protagonista decide delatar ou não o ex-amante por um crime que talvez não tenha sido cometido, ou o turista, fascinado pelos relatos de um homem estranho, decide se interfere ou não para impedir um perigo iminente (ou talvez irreal). São todos observadores à sua maneira, mas cada um deles tem o poder de transformar a narrativa — e muitas vezes é exatamente isso que fazem — como na novela Corazón Tan Blanco, quando os tradutores simultâneos mudam o rumo de um encontro entre dois chefes de estado.

Gosto tanto que até criei um conceito: as janelas de Marías (conto Mientras Ellas Duermen foi a maior inspiração. Texto brilhante, vale a leitura). Como se as suas narrativas pudessem ser vistas de um e de outro lado da janela, e a “a filosofia da composição” acontecesse, justamente, na combinação entre ambas. Sou permissiva como os personagens de Marías, e como eles também gostaria de viver a ficção na realidade, todos os dias.

E embora a nova obra tenha todos esses elementos, há algo novo. Quando comecei a ler a versão em português, tinha certeza de que havia algo por trás do “enamoramento” do Casal Perfeito. Pensei que, talvez, eles fossem amantes em vez de casados, ou que escondessem algum segredo terrível, que seria revelado depois, mas nada me preparou para o verdadeiro mistério ou o fluxo que a narrativa tomaria, ou as infindáveis e deliciosas referências a Coronel Chabert (que a Companhia das Letras acabou incluindo num pacote, numa edição bonita) ou Os Três Mosqueteiros ou, como sempre acontece com ele, Macbeth. Incrível que eu tenha me equivocado tanto a respeito de Maria e de Luiza — dois dos meus prenomes femininos favoritos…

Os enamoramentos do título talvez tenham menos que ver com a condição do “enamorado” do que com o tempo não contínuo do enamoramento, com a ideia de que as coisas, quando terminam, continuam abertas, de que a própria morte é transitória, e as ficções, reais como o nosso dia-a-dia mais banal.

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Li-o metade em português e inteiro em espanhol, e recomendo, tanto a edição física da Companhia como as duas versões Kindle (o livro em português pode ser comprado nesse link).

Flutuando pelo tempo

Cena do filme d'O Enigma de Uma Vida (The Swimmer), com Burt Lancaster

Cena do filme O Enigma de Uma Vida (The Swimmer), com o ator Burt Lancaster

Nietzsche dizia que, quando dormimos, os pés, sem sapatos, livres da necessidade de encostar no chão, causavam a estranheza dos sonhos. Acho que quase todas as teorias que ele tinha sobre os sonhos (“um homem que tem as pernas amarradas por dois cordões pode sonhar que cobras se enroscam nelas”) hoje soam absurdas, mas a metáfora dos pés ficou comigo desde 1999, uma vida inteira. E só consegui alcançar de verdade esse flutuar pelo espaço-tempo na piscina.

Na natação, a gravidade quase se anula, e a necessidade de se manter em movimento — o seu movimento — transforma o próprio espaço-tempo. Era o esporte que de que eu menos gostava na infância e na adolescência — pois era obrigada a cumprir as aulas quase diárias, que sempre envolviam a participação de dezenas de outras crianças e adolescentes — e foi o único esporte de que realmente gostei na vida adulta. Redescobri a natação porque gostava de água, simples assim, e porque em minhas viagens à Bahia competia por espaço com os banhistas e as lanchas na Praia do Porto da Barra, ao lado da beleza mais do que fantástica da Baía de Todos os Santos.

Na casa de praia, em Itacimirim, tínhamos uma brincadeira bem simples: nadar o máximo possível sem respirar, e sem enxergar, porque naquela época nem andávamos com os óculos de natação a tiracolo. Isso sem falar na maré que começava depois do Carnaval, em março, e ia até a Páscoa, em abril. Se não fosse aquela intimidade com o mar, não sei se teríamos sobrevivido.

Fiquei quase dois anos sem praticar natação, nadando só de vez em quando, na Bahia. Há algumas semanas, fiz uma aula teste ao lado de casa, na 4fit. Fiquei mais de 1 hora na piscina, nem sabia quanto tempo tinha passado, pois dali só dava pra ver o cronômetro. Impossível descrever o que senti ao sair de lá, ou mesmo durante, esse flutuar por um espaço-tempo desconstruído, como se São Paulo tivesse virado a Bahia.

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A foto é do filme The Swimmer, baseado no conto homônimo originalmente publicado na revista The New Yorker, e disponível na íntegra neste link.

Conto e filme são excelentes, e muito diferentes. Consigo me identificar demais com o personagem de Burt Lancaster.

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Estou lendo Los Enamoramientos, de Javier Marías, livro que já havia começado a ler em português, mas agora resolvi ler no original. Li há algumas semanas La Petite, de Michèle Halberstadt. Sensível e bonito, fala sobre uma tentativa inocente de suicídio — foi o terceiro livro que li sobre suicídio nesse ano. E me sugeriram um outro, Reconstructing Amelia. Estou lendo também algumas obras sobre marketing digital, bastante interessantes.