Faz tempo que eu comecei a ler o livro, um ano quase, quando a Companhia das Letras me enviou uma cópia da linda edição nacional d’Os Enamoramentos, a obra mais nova de Javier Marías.
Eles tinham lido alguns posts sobre o autor espanhol no meu blog e acharam que eu poderia me interessar, já que era fascinada por ele. Comecei a ler Marías nas aulinhas de espanhol da Cultura Española, em 2007 eu acho, e gostei na mesma hora de suas narrativas livrescas e personagens permissivos, que se davam ao luxo de viver toda e qualquer ficção em plena luz do dia. Os protagonistas de Javier — primeiro nome de um dos principais personagens do novo livro — leram muito Shakespeare, mas também Alexandre Dumas e Balzac, e trazem várias das características de seu criador: são poliglotas e amantes da literatura, as mulheres gostam muito de homens, e os homens, muito de mulheres. Sua literatura se constrói justamente no limiar entre a ficção e a realidade: no momento em que a protagonista decide delatar ou não o ex-amante por um crime que talvez não tenha sido cometido, ou o turista, fascinado pelos relatos de um homem estranho, decide se interfere ou não para impedir um perigo iminente (ou talvez irreal). São todos observadores à sua maneira, mas cada um deles tem o poder de transformar a narrativa — e muitas vezes é exatamente isso que fazem — como na novela Corazón Tan Blanco, quando os tradutores simultâneos mudam o rumo de um encontro entre dois chefes de estado.
Gosto tanto que até criei um conceito: as janelas de Marías (conto Mientras Ellas Duermen foi a maior inspiração. Texto brilhante, vale a leitura). Como se as suas narrativas pudessem ser vistas de um e de outro lado da janela, e a “a filosofia da composição” acontecesse, justamente, na combinação entre ambas. Sou permissiva como os personagens de Marías, e como eles também gostaria de viver a ficção na realidade, todos os dias.
E embora a nova obra tenha todos esses elementos, há algo novo. Quando comecei a ler a versão em português, tinha certeza de que havia algo por trás do “enamoramento” do Casal Perfeito. Pensei que, talvez, eles fossem amantes em vez de casados, ou que escondessem algum segredo terrível, que seria revelado depois, mas nada me preparou para o verdadeiro mistério ou o fluxo que a narrativa tomaria, ou as infindáveis e deliciosas referências a Coronel Chabert (que a Companhia das Letras acabou incluindo num pacote, numa edição bonita) ou Os Três Mosqueteiros ou, como sempre acontece com ele, Macbeth. Incrível que eu tenha me equivocado tanto a respeito de Maria e de Luiza — dois dos meus prenomes femininos favoritos…
Os enamoramentos do título talvez tenham menos que ver com a condição do “enamorado” do que com o tempo não contínuo do enamoramento, com a ideia de que as coisas, quando terminam, continuam abertas, de que a própria morte é transitória, e as ficções, reais como o nosso dia-a-dia mais banal.
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Li-o metade em português e inteiro em espanhol, e recomendo, tanto a edição física da Companhia como as duas versões Kindle (o livro em português pode ser comprado nesse link).