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Uma vida que não é a sua; Saudade de quem nunca conheci

Literatura Estrangeira, na Livraria da Vila do Shopping JK.

Literatura Estrangeira, na Livraria da Vila do Shopping JK.

Finalmente terminei de ler D’Autres vies que la mienne (em inglês, esta versão aqui), do escritor francês Emmanuel Carrère. A proposta do livro é encantadora: um escritor francês narra em primeira pessoa dois episódios bem íntimos que acontecem a outras pessoas: a morte de uma menina durante o tsunami de 2004, no Sri Lanka, e a morte de uma mulher jovem, lutando contra o câncer, em uma cidadezinha da França. Como ele mesmo diz, «À quelques mois d’intervalle, la vie m’a rendu témoin des deux événements qui me font le plus peur au monde : la mort d’un enfant pour ses parents, celle d’une jeune femme pour ses enfants et son mari.» (Em apenas alguns meses, a vida me fez testemunha dos dois eventos que mais me causam medo no mundo: a morte de uma criança, por causa de seus pais, e a morte de uma mulher jovem, por causa de seus filhos e marido).

Acho que algo se perdeu na tradução. Dá para sentir que alguns trechos devem ser mais poéticos no original, e que outras construções e metáforas fariam bem mais sentido em francês. Mas se o livro tivesse sido bem construído, a impossibilidade de tradução seria mero detalhe. Chamou a atenção o egoísmo do narrador na primeira parte do livro, em que ele narra a morte de uma criança francesa no meio da tragédia do tsunami. Parece que o pano de fundo é menos a tragédia do que a provação por que seu relacionamento passa naquele momento: a separação é iminente, e ao mesmo tempo a possibilidade de ter um filho com ela não é descartada. O personagem mais forte, e que não sofre tanto com a displicência egocêntrica do narrador, é Phillipe, avô da pequena Juliette.

A segunda parte é confusa, com descrições intermináveis e desnecessárias sobre como funciona o tribunal de pequenas causas na França, e o trabalho tão importante conduzido por Juliette — esta com 33 anos — e Étienne. Gostei da amizade dos dois, mas as referências à incompatibilidade sócio-econômica e intelectual entre cada um deles e seus respectivos cônjuges me incomodou, pois aí, em vez de torná-los mais fortes, o câncer se tornou uma espécie de deficiência que eles tiveram de compensar de outras formas. Tampouco acredito na dicotomia entre amor físico e intelectual que Carrère quis ilustrar aqui: Juliette só consegue conversar de verdade com Étienne, mas guarda um amor afetuoso pelo marido, Patrice. Não creio nesse amor que serve tão bem a narrativas literárias, e tampouco credito as pessoas por trás dele. O amor verdadeiro é complexo e completo, e mesmo nossos amores marginais não merecem ser divididos dessa forma.

O autor fala muito de si, e tem cuidado para revelar apenas o que os personagens desejam que revele. De certa forma, o título é desconstruído a cada instante, pois a vida que não é dele acaba sendo um livro em que ele só fala de si.

Mas se o livro vale a pena — toda boa literatura incomoda — desconfio que seja por causa de uma passagem bem curta em que Carrère fala sobre o que as meninas sentirão depois que Juliette se for. Saudade, pois mesmo as pessoas que não conhecemos, ou com quem passamos um tempo curtíssimo de vida, continuam a viver dentro de nós. E essa mistura de amor e saudade, palavra que não existe nem em francês nem em inglês mas que brotou das páginas do livro, é o que fica da leitura. O sofrimento das pequenas Diane, Amélie e Clara  tem mais verdade e literatura do que todo o projeto de Carrère, e em alguns parágrafos de seu livro, eu finalmente entendi o que é essa saudade de ausência que sinto do meu avô há tanto tempo, esse meu avô que nunca conheci mas que me ampara nos momentos mais tristes.

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Emmanuel Carrère participou da Flip em 2011.

Uma retrospectiva literária do mês de julho

Fim de tarde na praia do Porto da Barra, onde meu avó morreu em julho de 1981. Foto tirada em 2009

Mais de um ano de Brasil e de leituras variadas. Logo que voltei, ainda estava na expectativa de me inscrever no Mestrado em Francês na USP em agosto de 2011, e andava para cima e para baixo com os livros da bibliografia exigida. Queria falar sobre o estrangeiro, mas não sabia se escolhia Literatura, Língua ou Tradução, então acabei comprando todos os livros indicados. Li pelo menos algumas páginas de cada um deles, que são muitos, com atenção especial para Antoine Berman, uma preciosidade quase literária do mundo acadêmico, Edmond Jabès e seu Estrangeiro com um Livro de Pequeno Formato Debaixo do Braço, que acabou cruzando minha lista sem querer, pois era citado em vários dos livros, e claro, George Steiner, meu grande ídolo, que escreve deliciosamente em qualquer língua e cujo After Babel estava me esperando em casa logo que voltei (na França, optei por lê-lo na biblioteca mesmo, e ainda passei por apuros quando o moço não me deixou “alugar” 3x seguidas).

Tem também Derrida, e seu texto sobre Babel que até hoje não entendo direito (Des Tours de Babel) e cuja xérox está lá na minha sala. Tem Beckett, em francês e inglês, que comprei e baixei e culminou com a peça que fomos ver lá em Paris, Oh Les Beaux Jours, no Théatre de la Madeleine. Camus, que Tomás me emprestou naquele finzinho de julho passado, e tornou-se o ícone do meu estrangeiro (e do meu amor).

Aos poucos, fui me libertando e abocanhando toda e qualquer literatura. Wilkie Collins e sua Woman in White, seu Moonstone. Um escritor que já devia ter lido há tempos e foi cair no meu colo logo em julho de 2011, mês tão emblemático. Devorei seus livros no Kindle como se não houvesse amanhã, lendo no escuro no meio do apagão em nossa antiga casa em Perdizes. Baixei todas as palestras de Richard Feynman, certa de que me tornaria mais inteligente — como naquele dia em que, em pleno desespero, usei a equação de Einstein para calcular a distância do tempo de ausência de alguém que amava. Tornei-me, também uma curiosa na literatura sobre esquizofrenia. Henry’s Demons é brilhante, Recovered Not Cured nem tanto, e Making Sense of Madness exemplifica, planifica, conceitualiza tudo o que já imaginei sobre o assunto mas não tinha competência acadêmica para organizar. Freud e Jung de volta em A Most Dangerous Method e Studies in Hysteria, a trilogia Millenium, tão apreciada pelos franceses, e a minha primeira biografia: Steve Jobs. Ficção científica, rapidamente, com o lindo, emocionante Never Let Me Go e os Bradburies e Wells de todo dia. Novos velhos escritores — James Agee, Charles Bukowski, George Sand — e a descoberta de um dramaturgo-ator, Steven Berkoff. George Steiner nos intervalos de uma e outra coisa, Sandor Márai, e agora, a Pénélope de Emilio Rodrigué.

Depois desse retorno ao meu país, à Bahia, ao amor que ainda não conhecia (ou conhecia?), decidi que os anos deviam começar no mês de julho, meio-caminho entre a minha chegada, no dia 23 de junho, e o primeiro encontro com Tomás, em 28 de julho. Como começou em 1981, com o meu nascimento no dia 14 de julho, cinco dias depois do falecimento de meu avô. Ele havia dito: “Hoje vou ficar na praia até o sol se pôr”. É como se aquela tarde triste tivesse se estendido até o ano passado, e em 28 de julho de 2011 um novo dia tivesse nascido.