Arquivo mensal: março 2012

Não me Abandone Jamais (Never Let Me Go)

Vi o cartaz de Não me Abandone Jamais (Never Let me Go) pela primeira vez na França, há mais de um ano. Depois de ler a resenha e a crítica, negativas, desisti de ver o filme. Mas há poucos dias um amigo veio me dizer que tinha lido o livro no início do ano e era bom, e muito triste. Contou-me também que era do mesmo autor de Vestígios do Dia (The Remains of the Day) filme que vi há mais de 15 anos numa tarde chuvosa, no meu quarto, em Salvador. Na época não entendi muita coisa, mas os movimentos de Anthony Hopkins e Emma Thompson causaram uma impressão que guardo até hoje, de um tempo prolongado no espaço e de um espaço muito, muito inglês.

Embora viva há muitos anos na Inglaterra, Kazuo Ishiguro não é inglês. Ele então se encaixa naquela categoria de autores estrangeiros cuja língua materna não é a primeira língua, ou que têm mais de uma língua nativa, e que nunca pertencem totalmente a um lugar ou a uma cultura (isso me lembra o melhor conto que já li na New Yorker, Sweetheart Sorrow, do tradutor David Hoon Kim). Comecei a ler o livro no mesmo dia e terminei hoje, pela manhã, a caminho do trabalho. A narrativa fluida e ao mesmo tempo interminável de Kathy lembrou-me muito o tempo do filme com Anthony Hopkins. E não consegui parar de ler (aviso de spoiler: se você ainda não leu o livro nem viu o filme, melhor parar por aqui).

Por isso, nesses últimos 3 dias, vivi apenas parcialmente na realidade, com um sentimento muito forte de “danação”. Porque, como os “estudantes” de Hailsham, nós estamos todos condenados. Mas senti tudo de forma muito particular. Porque, como Kathy, tive minha Hailsham. E depois de ter ocupado a posição de estudante numa escola como aquela, fui parar no meu “Cottages”, em São Paulo, e de repente tinha liberdade suficiente para ir a Norfolk, mas não fazia muito mais do que isso. As tardes de devaneio e de solidão, a necessidade de me agarrar a alguém ou a algo estavam presentes desde Hailsham, mas agora haviam se tornado clandestinas. E quando os personagens se perguntam se tudo aquilo valeu a pena, toda aquela fantasia, aquela ignorância parcial, as leituras e discussões sobre James Joyce, as poesias que faziam para a Galeria ou os desenhos tão minuciosos dos animais imaginários (para mostrar como eram por dentro, que tinham alma), tenho certeza que sim. Sem a fantasia, seria impossível viver na realidade… e é o fato de estarmos condenados que nos torna tão humanos.

As Bibliotecas Falsas

A ideia de bibliotecas falsas surgiu durante a viagem que fiz à Colômbia em 2010. Sozinha num bar em Bogotá perguntei ao garçom o que seria aquela grande sala do outro lado, com os livros grudados às prateleiras. “É uma biblioteca?”. “Sim, mas é uma biblioteca falsa. Não tem livros”.

Toda Colômbia era literatura. Em Cartagena, logo na chegada, dei de cara com o meu alter-ego literário. Subi as escadas para usar o único computador da pousada, que ficava ao lado das duas maiores suítes. Mexi no mouse e apareceu-me uma tela: Malgosia, M-a-l-g-o-s-i-a, respondia em polonês ao e-mail de um dos hóspedes, e embora eu não entendesse nada de polonês, sabia que a assinatura era um diminutivo do seu nome (Malgosia para Malgozarka ou algo assim). E era íntimo. Minimizei a página e fui para o meu e-mail e então um homem abriu a porta de uma das suítes, inteiro nu, suado, e me perguntou num inglês quebrado se eu havia fechado a sua página de e-mail. Disse que não. Ele me pediu que o fizesse e fechou a porta. Comecei a imaginar coisas. Que Malgosia era sua amante e aquele era um e-mail de ruptura, que ela havia marcado um encontro com ele ali, em Cartagena, e depois mudado de ideia. Ou não. Depois eu o vi no lobby do hotel com a esposa jovem, anéis enormes no dedo. Minha personagem favorita havia escrito a seu amante e de alguma forma eu intercambiara a mensagem.

O segundo personagem foi Gabriel García Marquez. Ele estava presente em cada canto de Cartagena, e da Colômbia. Num dos primeiros dias fui tomar um mojito num resort — eu estava hospedada na Casa La Fe, uma pousada católica charmosa. Eles ainda não tinham começado a servir o almoço e o hotel estava às moscas. Na mesa do buffet, encontrei um símbolo de seu famoso livro, Cem Anos de Solidão: uma bacia de gelos incontáveis e mínimos que não derretiam.

O terceiro personagem foi o anjo de Dulce Compañia, de Laura Restrepo. Naquela semana, li também Sandor Marái, mas como a minha relação com o escritor começou muito antes, acho melhor deixar o assunto para outro momento. Descobri o livro numa pequena livraria do aeroporto de Bogotá, antes de tomar o voo para Cartagena. O enredo é o seguinte: uma jornalista de frivolidades é enviada pelo chefe para cobrir o “surgimento” de um anjo num dos bairros mais pobres da cidade. Apaixona-se por ele, com toda a religiosidade em torno do menino, lindo e jovem, e a sugestão de um quadro de esquizofrenia. Um dia, emocionada e confusa, deixei o livro na cadeira de sol e entrei na piscina. Boiei de barriga para baix, imóvel, por um tempo que deve ter parecido interminável. Aí vi um reflexo na água. O funcionário da pousada, assustado, tinha a mão estendida em minha direção: “Pensei que tivesse morrido”, ele disse.

Aos 30 anos

Aos 30 anos: novo poema da americana Paula Bohince, publicado na edição de inverno da Granta: “Bohince disse que o texto começa com a decisão de escapar do stress da cidade e voltar para a casa da mãe, ‘sentindo-se um fracasso total’. Bohince combinou descanso com resignação, nas tardes de comida de microondas e sonecas, e nado no meio de pacientes fazendo fisioterapia”.

Aos 29, fugi para a França. Nadei sozinha na água gelada do Mediterrâneo vezes incontáveis. Recitei Baudelaire em silêncio, no inverno. No intervalos de almoço, comia omeletes porque não tinha microondas. Lia deitada na grama, na faculdade, e buscava livros de Steiner e Derrida e Beckett. Dormia muito à tarde, por isso num dos projetos finais decidi falar sobre o sono, cientificamente. Voltei para o Brasil dias antes de completar 30, para uma nova vida, e agora quero ganhar um novo nome.

Abaixo, tradução em português:

Aos 30, fugi da minha vida

numa chuva de granizo num incêndio, em direção

ao que chamei de ‘grande descanso’,

desfiz as malas na casa de minha mãe,

dormi na cama da minha irmã,

me inscrevi na natação do Y, nadei duas vezes,

diariamente, nas manhãs

os pacientes fazendo fisioterapia

na parte rasa,

nas tardes pendurava maiô molhado,

bandeira preta em linha,

a comida no microondas, e depois a soneca,

o sono minha calamina, o cloro

meu remédio, minha fraqueza por toda parte,

mal conseguia me aguentar.

Nadei nas noites, antes de fechar,

recitando poemas em silêncio,

da antologia de minha mente,

eu estava sozinha, nadando de costas,

pela câmera úmida, debaixo

de afrescos de golfinhos e ninfas,

Flutuei, como um bebê no berço,

fascinada com aquelas imagens suaves —

Por muito tempo foi assim.

Uma Garota do Campo

Quando o antigo bordel — conhecido como Butt Hut – fechou, anos atrás, publicaram um anúncio no jornal: “Casa no rio: oito quartos, oito banheiros, sem cozinha. Novos tempos forçam a venda”, é o trecho inicial do conto The Prairie Girl, de Thomas McGuane, publicado na edição de 27 de fevereiro de 2012 da New Yorker.

Stegner Fellow da Stanford University na década de 70, Thomas já publicou 10 contos na New Yorker e vários livros, inclusive em português. Nunca tinha ouvido falar dele. O conto é bom e dividido em três tempos. A partir do segundo momento, a narração gira em torno do casamento, bem-sucedido até certo ponto, de uma ex-prostituta com o banqueiro gay da cidade. Saul Bellow chamou McGuane de “language star”, e a linguagem realmente muda para cada tempo da história.

Decidi ler o texto por causa do trecho de abertura: achei que tivesse algo a ver com as idiossincrasias do mercado imobiliário. E hoje aluguei meu primeiro apartamento, num dos meus bairros preferidos. Logo precisarei selecionar que livros levar, e olha que ainda nem temos uma estante.

Samuel Beckett começa seu romance L’Innommable com “dire je”. De origem irlandesa, o autor havia começado a carreira escrevendo na língua nativa mas, nessa época, as versões originais de suas obras já eram quase exclusivamente em francês (depois ele mesmo as traduzia para o inglês). Ao dizer “je” e não mais “I”, ele tenta se libertar de todos os eus que não têm relação com o “eu criador”, em busca de um “moi” puro. Embora nunca chegue lá realmente, a construção inscrita nesse movimento torna possivel uma literatura bem original.

Comecei a ler Beckett — e Derrida e George Steiner — na França, no início do ano passado. Queria entender este eu estrangeiro, tão comum em território francês — talvez por causa da multiplicidade de línguas faladas na França d’Outre Mer, ou da variedade de estrangeiros que abandonam sua língua materna pelo francês. Encontrei-me com Edmond Jabès e seu estrangeiro com um livro debaixo do braço, Akira Mizubayashi e sua história na minha cidade, Steiner (um caso raríssimo e maravilhoso de tripla nacionalidade), Ionesco e, claro, Beckett. Apaixonados pela língua francesa, eles já não eram mais egípcios, japoneses, europeus (George Steiner nasceu em Paris mas era, sobretudo, europeu), romênios, irlandeses… mas tampouco chegavam a ser franceses. Este limbo literário seria, para tantos, e logo para mim também, um estado permanente d’étrangeté .

De volta ao Brasil, encontrei a pessoa mais importante da minha vida e ele me emprestou O Estrangeiro de Camus (outro estrangeiro, argelino radicado na França). Li a obra famosa pela primeira vez e suas palavras, Cela ne veut rien dire, até hoje ressoam dentro de mim, como aquelas de Beckett…

Talvez toda literatura seja estrangeira.

Na foto, traduzindo o texto Lunch, do ator e dramaturgo Steven Berkoff.