Vi o cartaz de Não me Abandone Jamais (Never Let me Go) pela primeira vez na França, há mais de um ano. Depois de ler a resenha e a crítica, negativas, desisti de ver o filme. Mas há poucos dias um amigo veio me dizer que tinha lido o livro no início do ano e era bom, e muito triste. Contou-me também que era do mesmo autor de Vestígios do Dia (The Remains of the Day) filme que vi há mais de 15 anos numa tarde chuvosa, no meu quarto, em Salvador. Na época não entendi muita coisa, mas os movimentos de Anthony Hopkins e Emma Thompson causaram uma impressão que guardo até hoje, de um tempo prolongado no espaço e de um espaço muito, muito inglês.
Embora viva há muitos anos na Inglaterra, Kazuo Ishiguro não é inglês. Ele então se encaixa naquela categoria de autores estrangeiros cuja língua materna não é a primeira língua, ou que têm mais de uma língua nativa, e que nunca pertencem totalmente a um lugar ou a uma cultura (isso me lembra o melhor conto que já li na New Yorker, Sweetheart Sorrow, do tradutor David Hoon Kim). Comecei a ler o livro no mesmo dia e terminei hoje, pela manhã, a caminho do trabalho. A narrativa fluida e ao mesmo tempo interminável de Kathy lembrou-me muito o tempo do filme com Anthony Hopkins. E não consegui parar de ler (aviso de spoiler: se você ainda não leu o livro nem viu o filme, melhor parar por aqui).
Por isso, nesses últimos 3 dias, vivi apenas parcialmente na realidade, com um sentimento muito forte de “danação”. Porque, como os “estudantes” de Hailsham, nós estamos todos condenados. Mas senti tudo de forma muito particular. Porque, como Kathy, tive minha Hailsham. E depois de ter ocupado a posição de estudante numa escola como aquela, fui parar no meu “Cottages”, em São Paulo, e de repente tinha liberdade suficiente para ir a Norfolk, mas não fazia muito mais do que isso. As tardes de devaneio e de solidão, a necessidade de me agarrar a alguém ou a algo estavam presentes desde Hailsham, mas agora haviam se tornado clandestinas. E quando os personagens se perguntam se tudo aquilo valeu a pena, toda aquela fantasia, aquela ignorância parcial, as leituras e discussões sobre James Joyce, as poesias que faziam para a Galeria ou os desenhos tão minuciosos dos animais imaginários (para mostrar como eram por dentro, que tinham alma), tenho certeza que sim. Sem a fantasia, seria impossível viver na realidade… e é o fato de estarmos condenados que nos torna tão humanos.